Imagine você… Uma saga sem solução

Imagine você… Uma saga sem solução

21 de janeiro de 2022, 9h14

Por Olga Vishnevsky Fortes

Imagine que você tenha se preparado muito. Estudado por anos. Tenha de cumprir difíceis requisitos, como ter um mínimo de anos de trabalho na área, além da graduação. Tenha passado por processo seletivo com milhares de concorrentes, com várias fases, por mais de uma vez. Suponhamos que seu interesse fosse fazer a diferença, contribuir, exercer sua posição com toda a dedicação, até porque é exigida a dedicação exclusiva para a função.

O salário é alto, pois é preciso. Pela importância do cargo, pela dedicação exclusiva, pelo trabalho contínuo — já sabendo que pode e vai trabalhar dia ou noite, finais de semanas e em férias, na grande maioria delas, por anos a fio.

Antes do processo seletivo dizem quanto você vai ganhar, se passar. Em regras alardeadas pelo grande empregador há o claro compromisso de que seu salário será corrigido anualmente. A regra não é só alardeada, mas escrita na regra maior de todas as que regem a empresa. Não terá bônus, FGTS, horas extras, adicionais. Mas terá dois períodos de férias por ano — embora, de fato, tenha de trabalhar numa ou nas duas, sem recebê-las em dobro, como a maioria dos empregados.

Receberá o salário integral quando se aposentar. As regras estabelecem que você terá um desconto, em folha, do IR e de 11% de algo parecido com o INSS. As regras de aposentadoria também estão lá, claras.

Depois de um tempo de aprovação — e foram somente 0,002% de aprovados no meu "processo seletivo" —, passam a não corrigir seu salário anualmente. Estamos falando de reposição de perdas inflacionárias, e não salário real. Mas lhe dão um auxílio — que outras categorias na mesma hierarquia recebiam anos antes de você —  porque não querem corrigir os salários.

Mas depois de pouco tempo esse auxílio é retirado, pela grande pressão externa, e suas perdas salariais representam quase 50% daquilo que foi pago e prometido inicialmente. Sim. Você ganha hoje quase 50% do que deveria receber. Ainda é um bom salário, mas não é o correto, o prometido, o previsto — e não é sequer ético comparar o seu salário com o daquele que exerce função que não exija tudo o que se exige de você. Você tem mais de um código de conduta a respeitar.

Dizem que as regras iniciais devem mudar e você passa a não ter direito ao salário integral depois que se aposentar. Alguns que passaram no processo seletivo muito antes da alteração das regras não saem ilesos. Todos passam a ter um desconto salarial superior ao inicial de 11%, qual seja, de mais de 16%, além do IR. E esses descontos serão feitos até quando você se aposentar. Você sempre vai receber quase 43% a menos do salário que é noticiado. Se você trabalhar seus 30 anos, vai pagar com folga a sua aposentadoria e outras se viver até os 80 anos.

Se houvesse acúmulo de serviço — ou você recebesse, sozinho, mais de 1,5 mil processos por ano —, você deveria receber uma verba, mas criam regras diferentes para quem exerce a mesma função, e alguns recebem e outros não. Você não recebe porque seu empregador resolve contar seu serviço de forma diferente, pois não tem verba para pagar o que deveria. Você é preterido.

Embora muitos colegas exerçam a mesma posição estratégica que você em outros segmentos, os processos da sua área são específicos e cada processo tem um volume — número de pedidos —, que pode significar mais de 20 vezes os processos de outras áreas. O grande empregador não leva em conta as especificidades de quem trabalha na sua área. Não lhe interessa. E continua a tratar igualmente os desiguais.

Há previsão de um auxílio num percentual de seu salário para que você pague o plano de saúde. Mas esse percentual, reconhecido pelas regras, é pago para alguns integralmente e para outros há um pagamento ínfimo, que representa 0,14% do que você paga de seguro-saúde para você e seu familiar.

Você foi contratado para exercer um cargo estratégico dentro da empresa e para receber salário condizente com a importância — não sua, mas do cargo —, mas comparam seu salário ao salário mínimo para lhe ridicularizar publicamente, garantindo que você receba cada vez menos, embora outros cargos estratégicos em empresas similares continuem recebendo verbas indenizatórias que você e seus colegas nunca viram ou irão ver.

Quem faz as regras ou alardeia sua posição como privilegiada às vezes se submete à sua área e às suas decisões, o que não parece, nem de longe, muito justo.

Dizem que você tem carro e motorista fornecidos pelo seu empregador, mas não contam que você, que passou pelo processo seletivo, só pode ter isso se exercer seu ofício por 20 ou 25 anos. E não há garantia de que você consiga alcançar tal benefício, ante o número restrito de vagas. A grande maioria dos que exercem seu ofício usa seu próprio carro e paga sua gasolina. Mas você abriria mão desse seu futuro e quase que inalcançável benefício se as regras fossem cumpridas.

Para que fique tudo mais complicado, pegam o salário de alguém que exerce o mesmo cargo e que recebeu alguma diferença ou alguma verba que você e a grande maioria dos colegas nunca recebeu para dizer que você explora seu empregador. Usam a exceção como exemplo, de forma a colocar todos contra você.

E você, que tem por escopo cuidar para que as regras sejam cumpridas, não consegue fazer valer as regras quando essas lhe dizem respeito.

E se fossem outros os verdadeiros personagens dessa história? Suponhamos que você fosse um juiz, mais especificamente do Trabalho. Os outros personagens você haverá de reconhecer...

Olga Vishnevsky Fortes é juíza titular da 7ª Vara do Trabalho de São Paulo, presidente da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT) e pós-graduada em Processo Civil e Administração Judiciária.

Publicado em: 04/02/2022 15:49:00

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